quinta-feira, 15 de outubro de 2015

15 DE OUTUBRO - DIA DOS PROFESSORES

         A vocês colegas, que conseguem com maestria, enxergar talentos e suavizar  dificuldades com sutileza e afeto, meus sinceros parabéns!

CAFÉ COM LEITE

Jardim Paulista, fim dos anos 40. Noites de verão.
Como era então meu cotidiano? Se não estivesse operada, acordar, fazer lição, brincar um pouco, almoçar, ir para o colégio, voltar, tomar banho, brincar ou jogar, jantar, ouvir Nhô Totico pelo rádio, ler na cama e dormir.
        Quando chegava o verão a rotina se modificava. Contrapondo-se ao ouvir rádio e ir pelo rádio, ler na cama e dormir, as noites quentes traziam as brincadeiras de rua.
        Que coisa complicada era essa alteração. Quanta ambiguidade! Por um lado, mergulhar na vida lá fora; por outro, abrir mão da proteção lá de dentro: noites de verão traziam brincadeiras de roda, passa-anel, estátua e telefone sem fio. Mas traziam também calçadinha-é-minha, lenço atrás, queimada, pegador...
        Nesta eu era café com leite, e era sempre terrível ser café com leite. No jogo de equipe, a humilhação de me sentir escolhida por favor... (A custo as lágrimas eram engolidas por trás do sorriso amarelo). No “salve-se quem puder”, a de roçar no pegador e não ser pega, de não receber o lenço, de não atingida pela bola.
        Que mal me fazia ser café com leite! Aquele faz de conta que é, mas não é, que não é, mas é. Um jogo de mentiras, de cartas marcadas, de fingimento, até talvez bem intencionado.
      Foi a professora de ginástica do colégio que me fez viver uma coisa diferente. É estranho, mas esqueci seu nome.
       Por lei, eu estava dispensada de suas aulas. Minha atividade esportiva restringia-se à aula de natação, permitida e incentivada porque benéfica para a minha reabilitação.
         Assim, nem o uniforme de ginástica eu precisava ter.
      Isso não durou muito. Terá parecido uma eternidade?  Um dia ela me chamou para a roda de alunos sentados no chão. Em claro e bom som, propôs a mim e ao grupo que eu começasse a participar das aulas.  
       _ Como? Perguntei alarmada, com os olhos pregados nos colegas.     
       _ Muito simples. Você fará o que pode fazer e não fará o que não pode. Por exemplo: aprenderá como tocar a bola com as pontas dos dedos, como dar saques, quais as regras do jogo. Ter o prazer de pegar na bola você terá. Mas não competirá num jogo, pois não seria bom nem pra você. Ajudar o juiz, aprender a pensar com ele, você pode e fará.
         E desfiou um rosário de alternativas que incluíam jogos competitivos e atividades individuais de ginástica: “levantar os braços, flexionar a cintura dá para fazer, então faz, flexionar os joelhos, saltar, correr não dá para fazer, então não faz”.
         Simples e honesto.
         Eu nunca precisei ser café com leite nas aulas de ginástica e, ainda por cima, ganhei o calção-azul bufante e camiseta de malha!

Ligia Assumpção Amaral
Resgatando o passado: A deficiência como figura e a vida como fundo

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